sábado, julho 30, 2005

Do que eu me recordo... ou porque é que Bergman é um génio

Persona segue o percurso de uma actriz, que após um esgotamento nervoso se recusa a falar. A enfermeira que a acompanha na convalescença, vai, a pouco e pouco, entrando no mundo da paciente, e cada vez mais se identifica com a muralha protectora da mesma.
Nada é linear neste filme, cheio de subtilezas, como aliás todo o cinema de Bergman, onde a psicologia das personagens é muito mais acentuada em detrimento do conteúdo narrativo. Tanto Alma quanto Elisabeth mal se conhecem, mas na medida que convivem juntas e sozinhas na casa de praia, a sua relação se transforma de enfermeira e paciente para uma conexão de identidade e personalidade. É um problema emocional, interno. Elisabeth não quer falar, só quer existir. E Alma é totalmente o oposto dela. O início da relação entre as duas personagens é “saudável”, mas vai-se desmoronando com o tempo, devido à saturação do isolamento, a enfermeira descarrega toda a sua alma e vida na actriz que representa o que sente sem precisar de palavras.

A imagem, a película, o filme inicia mostrando a ilusão do cinema, talvez para o espectador tomar consciência de que não se trata de uma transposição mecânica do mundo exterior para um ecrã, mesmo que a superfície esteja coberta de imagens o que nela aparece nunca é o real. A banda sonora acompanha esta ilusão que confronta a realidade do quadro (projecção) dentro do quadro (filme). Durante a projecção do filme o espectador oscila entre o “estar” e o “não estar”, a presença do ecrã acaba por ser reforçada. O cinema é esse próprio impulso, que logo beneficia o irreal que se espalha pelo real.

As duas personagens tiveram problemas com a maternidade: Alma fez um aborto e Elisabeth odeia o filho por nascer deformado. As duas fizeram sacrifícios na vida por vontade própria. E a relação enfermeira/paciente também é um sacrifício para Alma, que tem que abandonar a sua vida para cuidar de Elisabeth. Podemos observa-la através de vários ângulos e escalas de plano, como se estivéssemos a analisar esta mulher/personagem ao pormenor, algo que normalmente faríamos mas que Bergman nos “obriga” a fazer sem pudor. Sentimos Elisabeth através das expressões do seu rosto e das suas acções, não precisamos de palavras.

A força dramática provém da capacidade para desencadear sensações e emoções que sentimos como reais. O corpo das personagens (matéria) funde-se com alma (ideia), o espectador torna-se incapaz de ver o filme, passa a senti-lo. Não somos apenas levados por uma força de realismo corporal, mas também por uma força objectiva, não é somente corpo nem somente alma. Não é só o sentimento, nem é só a realidade, passamos a sentir a “realidade”. Sentimos ausência, sobretudo, quando Bergman recorre a paisagens sem as personagens presentes, a subjectividade que nos coloca em contacto com o invisível, mostrando o mundo interior na falta de outras imagens que o possam descrever. Elisabeth tira-nos uma fotografia, talvez para não nos esquecermos que somos espectadores, voyers. O jogo entre o ver e o ser visto nunca desaparece.

Ver um filme de Bergman é meditar, é ir mais fundo possível no âmago do ser humano... o cinema é utilizado como instrumento de introspecção, como meio revelador dos estados da alma... e o caminho para penetrar na alma de um ser humano começa pelo rosto.